MEDO, VULNERABILIDADE E EMPATIA: entrevista com Gilmar Machado e Rodrigo Usba

Por Coletivo Leitor - 04 nov 2020 - 11 min

A literatura para crianças e as habilidades socioemocionais (parte II)

Leia  a seguir a segunda e última parte das entrevistas com os participantes da live realizada por ocasião do lançamento do mais recente título da coleção Dó-ré-mi-fá, da Scipione, O medo de rabo preso, de Marina Miyazaki, com ilustrações de Gilmar Machado, com a presença dos autores do livro e do terapeuta, escritor e especialista em habilidades socioemocionais, Rodrigo Usba.

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GILMAR MACHADO

Coletivo Leitor: Gilmar, você trabalha como ilustrador em diferentes frentes, faz cartum político, quadrinhos, ilustrações para livros didáticos e de literatura. Sente que, a despeito da variedade de meios, veículos e públicos, há um denominador comum que unifica a sua produção e identifica o seu traço?

Gilmar Machado: Como ilustrador, tenho que atuar em várias frentes dentro da linguagem da ilustração. É preciso certa adaptação gráfica no estilo de traço considerando a característica de cada público. Um trabalho desenvolvido para um livro didático tem toda uma preocupação com o didatismo e o “politicamente correto”, à diferença de um trabalho mais autoral, crítico e às vezes muito contundente, como é o caso da charge política. É possível, no entanto, fazer uma ilustração para uma obra literária com as mesmas características do traço mais pesado da charge. Eu creio e sinto que a forma gráfica no geral deve expressar o conteúdo de uma obra, é preciso considerar o nível de emoção, tristeza, alegria e transmitir isso na ilustração. Tudo isso está no estilo do traço e também no peso (ou leveza) das cores aplicadas na arte final.

CL: Quem o convidou para o projeto de O medo de rabo preso foi a própria autora da história. Como foi o contato inicial entre vocês e que diferença ele fez na gênese das imagens?

GM: Tivemos esse contato inicialmente nas redes sociais, em seguida nos encontramos e passamos vários meses discutindo como trabalhar as ilustrações da obra. Isso porque o assunto abordado tem certa delicadeza, e o formato da ilustração seria importante. Experimentamos e estudamos algumas possibilidades e por fim chegamos à concepção final com o apoio de toda a equipe editorial da Somos.

CL: Ao longo das ilustrações, nunca se vê o rosto das personagens humanas, apenas o dos monstros. Qual foi a intenção subjacente a tal escolha?

GM: Isso foi uma decisão fundamental tomada com base no contexto da história. Desde o início a Marina sugeriu não mostrar o rosto das personagens. De fato, isso faz todo sentido, tendo em vista as questões emocionais e comportamentais abordadas no texto. Decidimos então mostrar apenas detalhes, para que ao longo da história (e sobretudo no final) os leitores interpretem livremente o que leem e veem.

CL: Na parte final do livro, você desenha à maneira de uma criança. Como imitar o grafismo infantil sem ceder ao estereótipo?

GM: É aquela história que nós, ilustradores, costumamos contar: somos a criança que nunca parou de desenhar. Na verdade, tentamos como adultos resgatar esse lado da experessão infantil, mesmo assim acho que não o alcançamos totalmente. Aliás, sendo adultos ou crianças, a interpretação, no desenho como na leitura, é sempre muito individual.

CL: A história da Marina tem um final “em aberto”, não sabemos o que acontece com a mãe do protagonista, que se encontra gravemente enferma. No entanto, a ilustração final, com uma janela dando para uma paisagem ensolarada, com flores e passarinhos sugere um final feliz. A ilustração então faz ler o texto de modo esperançoso, direcionando a leitura. Como se deu a decisão sobre essa imagem final?  

GM: Essa imagem representa tudo que eu e a Marina discutimos desde o primeiro papo sobre o livro. A esperança aí refere-se ao aprendizado para lidar delicada e naturalmente com os medos e monstros que encontramos ao longo da vida. Agradeço muito à Marina pelo convite para ilustrar essa obra e à equipe editorial da Somos, por todo o apoio.

RODRIGO USBA

Coletivo Leitor: Uma das coisas que aparece muito na história da Marina é a empatia nascida da consciência e da aceitação da vulnerabilidade. O protagonista pode se encarregar, à sua maneira, do cuidado da mãe por conhecer os próprios monstros e perceber a funcionalidade do medo. Qual a importância da empatia como habilidade socioemocional e o que a literatura tem a oferecer para o desenvolvimento dessa habilidade?

Rodrigo Usba: Primeiramente considero importante explorar as ideias de “empatia” e “habilidades socioemocionais”. Empatia vem vocábulo grego “pathos”, que designa toda a gama de sentimentos que uma pessoa pode experimentar. Com o prefixo “em-” (empatheia), passa a significar a capacidade de se pôr no lugar do outro, de sentir o que o outro sente.

Vale ressaltar que é fácil confundir a empatia com outro fenômeno, o de se perder dentro do outro, de se confundir com ele, afastando-se das próprias necessidades e percepções, o que pode ser danoso de parte a parte.

Já as habilidades socioemocionais referem-se à capacidade de se reconectar com as sensações e os sentimentos, de identificá-los, nomeá-los e expressá-los. Desse modo, tornam-se mais palpáveis os limites e os possíveis encontros interpessoais (“Eu sou eu, você é você e, nesse momento, estamos aqui juntos, cada qual com seu mundo interno, experimentando essa relação”). A relação pode ser considerada o terceiro elemento entre o “eu” e o “tu”, o qual só surge no encontro.

A literatura introduz o leitor no complexo de atitudes, sensações e comportamentos de um personagem, enriquecendo a visão sobre ele. Por exemplo, um personagem pode ser apresentado em determinada situação e agir de modo a suscitar a rejeição do leitor. Porém, no decorrer da narrativa, ao se apresentarem outras situações, essa visão pode se transformar. O julgamento reducionista do início adquire novos contornos, o que favorece a percepção da humanidade do personagem; passo importante para o desenvolvimento da empatia.

A identificação com os personagens dá ao leitor a oportunidade de lidar com seus sentimentos de modo mais acolhedor. Assim, mesmo percepções internas dolorosas podem ser compartilhadas. Os laços sociais são fortalecidos, não só por afinidade, mas pela capacidade de escutar a si e aos outros, a despeito das diferenças.

A literatura pode também fornecer novas imagens a antigos problemas, por meio delas o leitor encontra formas de lidar criativamente com seus conflitos e inibições.

CL: O texto do livro também enaltece a importância de estar ao lado das pessoas que estimamos não apenas fisicamente, mas em pensamento. O que, na prática, pode sustentar essa aptidão?

RU: Estar em contato com o que se sente, reconhecer, legitimar os sentimentos e cuidar deles, quaisquer que sejam, é um passo importante para sustentar tal aptidão. Um pensamento desconectado da emoção e da sensação torna-se facilmente fantasia; já um pensamento ancorado na emoção e no corpo, quando reconhecido e expressado, exerce uma função de equilíbrio e regulação da própria pessoa que pensa, sente e tem necessidades.

Tal pensamento pode ganhar materialidade através de uma carta, de uma música, de um desenho, que pode ser endereçado a alguém ausente ou distante, enriquecendo o vínculo interpessoal. Tal prática pode ser realizada mesmo com pessoas que já morreram, como ferramenta de elaboração do luto, afinal, por meio da memória aqueles que perdemos ainda participam da nossa vida.

CL: Você também é autor de dois livros para crianças pelo selo Formato, que faz parte do catálogo da Somos. Essas narrativas serviram de base para um projeto que você vem desenvolvendo nas escolas, de contação de histórias, de natureza cênica e interativa. Fale um pouco desse projeto e de como ele têm ampliado sua visão sobre as habilidades socioemocionais.

RU: Apesar da educação em geral priorizar o desenvolvimento racional-cognitivo, não podemos esquecer da inteligência emocional e instintiva. Alguns estudantes têm facilidade para aprender matemática, outros se saem melhor em trabalhos manuais, na prática esportiva, outros ainda preferem lidar com pessoas diferentes, mediar conflitos, exercendo a empatia. Em alguns a inteligência cognitiva é mais desenvolvida, noutros, a inteligência emocional ou a instintivo-motora. Desenvolvo projetos que estimulem essas diferentes inteligências para que cada indivíduo possa, ao mesmo tempo, aprimorar seu potencial, conquistando também desenvoltura diante de problemas que demandam o desenvolvimento de capacidades que ele não possui de antemão.

No projeto baseado no livro-imagem Thomas Tristonho, crio uma dinâmica de sensibilização com vendas nos olhos. Quando se suspende a visão, os outros sentidos ganham proeminência. Assim os alunos ativam sua inteligência instintiva por meio de outras percepções sensoriais (cheiro, temperatura, sons, sabores, texturas). Em seguida, mediante uma contação de histórias interativa e vivencial, com bastante contenção e acolhimento, as crianças entram em contato com sentimentos muitas vezes renegados ou mal compreendidos, como a tristeza e o medo.

Ao contar com suas próprias palavras a história do personagem, os educandos compartilham seus medos, desejos e tristezas. (Para saber mais conheça o projeto no site www.thomastristonho.com.br)

Já com o livro Dois ou um, uso a mesma metodologia para que as crianças vivenciem a história de duas garotas que se tornam tão próximas a ponto de terem os cabelos entrelaçados. A partir de então lidam criativamente com o desafio de andar lado a lado unidas pelo mesmo cabelo, que segue crescendo…

Acervo Rodrigo Usba

Nos dois livros temos narrativas em imagens, sem palavras. Para explorar ludicamente o livro Dois ou um, levo grandes panos que utilizamos como cabelos. Experimentamos no próprio corpo as dinâmicas propostas no livro: encontro, reconhecimento, descoberta, conflito, separação, individuação e reencontro. Juntos criamos espaço acolhedor onde cabem não só os risos e conquistas, mas também a dor e a frustração, a tristeza e a raiva. O educador deve acolher os próprios sentimentos para acompanhar os educandos nessa travessia tão intima e pessoal.

CL: No livro da Marina e do Gilmar, o menino abre a “porta da voz” para deixar sair os monstros e também os desenha para mãe, para ajudá-la a trocar os monstros invisíveis que a enfraquecem pelos monstros de papel, tornados visíveis. No seu trabalho em escolas, você também estimula as crianças a contar histórias a partir das ilustrações do seu livro e a criar elas próprias um livro ilustrado. Como tem sido essa experiência?

RU: Todos nós somos artistas. Cada um de nós tem a capacidade de criar e principalmente de se expressar, independentemente da idade e das convenções sociais sobre o que se considera arte.

Quando proponho a criação de um livro, aproveito tudo o que emerge em cada criança ou adolescente: cores, imagens, palavras. Sem me preocupar muito com a qualidade estética desse material, acolho a manifestação espontânea de cada um. Dependendo do projeto, o uso desses materiais pode priorizar a descoberta de certos sentimentos, a percepção das diferentes dinâmicas relacionais, o que às vezes redunda em um livro coletivo. No fim temos uma narrativa que revela um mapa afetivo daquela turma, que desencadear um novo começo, uma nova pesquisa.


Gilmar Machado nasceu em 1965, no Sertão baiano, tendo se mudado há muitos anos para São Paulo, onde trabalha ilustrando livros, jornais e revistas. Já recebeu o Prêmio HQ MIX de melhor cartunista brasileiro em 2002 e o Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos em 2006, entre outros.


Rodrigo Usba é terapeuta formado pelo Instituto Gestalt de Vanguarda Claudio Naranjo, advogado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), educador e artista multiplatafórmico. Usba é também autor dos livros Dois ou um? e Thomás Tristonho, publicados pelo selo Formato (SOMOS Educação).